Aquilo que não falamos sobre


Marcos Ribolli / GE

O futebol, como tudo, é um espaço de disputa.

Qual um dos princípios condicionantes da existência? Algo indissociável da vida, pútrido, repulsivo, constantemente rejeitado. Aquilo tão presente, tão próximo..., mas que escolhemos não falar sobre? 

A violência é vida. E a vida, inevitavelmente, é violência. Não se trata de uma opinião ou de um debate moral — é uma constatação crua da existência. Desde o primeiro suspiro até o inevitável colapso, viver é disputar espaço, recursos, atenção, sobrevivência. O crescimento exige ruptura. O amor fere. A natureza não é gentil. A história humana, desde suas origens, se escreve em sangue e conquista.

Negar isso é romantizar a existência. A violência não está apenas nas guerras, nas ruas ou nos noticiários. Ela está nos gestos sutis de dominação, nas estruturas de poder, na desigualdade mantida. Comer é violência. Não importa quão vegano você seja – o ato de comer é, em sua essência, um ato de dominação e destruição. Mesmo ao consumir uma planta, estamos arrancando algo de seu habitat, privando-o de sua vida, e de sua capacidade de crescer e desenvolver. Um ciclo é violado sempre que tomamos para nós o que não nos pertence. Se a consciência é o critério que determina o que é aceitável, até que ponto seria justificável consumir alguém em coma, indotado de cognição? Então, mesmo distantes do passado de caça e coleta, a vida continua a obedecer uma regra: matar ou morrer.

Ragebait

Se você não tem o contexto, a nossa página é conhecida praticante de ragebait, a arte de provocar para colher ódio. É uma prática comum hoje em dia, especialmente com a monetização de postagens (o que não é o nosso caso). A gente faz por puro gosto: pela atenção tosca e, claro, pela risada provinda do absurdo. E é justamente o que me provocou essa reflexão. 

Mesmo quando uma provocação faz sentido, ela não faz. Por que estamos justificados somente dentro da nossa própria verdade, das nossas feridas, da nossa vontade de revidar. Provocar é uma forma de agredir. E talvez, por saber desse absurdo, eu me sinto animalizado. Como se algo em mim se afastasse da racionalidade e se entregasse ao instinto. Leve em consideração que eu só falo MERDA. E mesmo não acreditando no que digo, me sinto bravo (ou agredido) por uma resposta naturalmente mal-educada. Sempre tem um lado que sai por cima e outro que fica para trás. Um vencedor e um derrotado. 

Essa potencialização de viés, faz com que não enxerguemos o óbvio. Quando essa agressividade ganha forma concreta, visível, é aí que a maioria começa a chamá-la, finalmente, de "violência".

A neutralidade é um mito

UOL

A ideia de que podemos ser completamente neutros em nossas escolhas e percepções é uma ilusão. 

Mesmo que se busque apresentar os fatos de maneira equilibrada, a seleção do que é relevante, as palavras escolhidas, a estrutura de uma notícia — tudo isso está imbuído de escolhas, filtros inconscientes. Não é uma falha de caráter, é uma parcela da vida. Somos reflexos da realidade e da sua estrutura, não existe homem além do seu tempo, ou além da sua vida.  Entender isso (e aceitar) é um ótimo início para uma autorreflexão crítica de tudo que reproduzimos. Na lógica competitiva do esporte (e sinceramente, em todos outros caminhos da vida) deveria ser a grande responsabilidade de todo criador de conteúdo. Mesmo que não esteja em você, está no seu inconsciente, está ao seu redor. Está na maneira em como naturalizamos... tudo. 

Ontem, em sua coluna do UOL, PVC publicou: “Vila Belmiro tem quarto ano seguido de violência e perdão dos tribunais”. A matéria é simples, mas razoável e pungente, questionando a permissibilidade jurídica aplicada ao Santos. 

Quando li, fiquei indignado. Afinal, sou torcedor, e a impressão que tive não foi de uma preocupação genuína com o problema, mas sim de um pedido desesperado por punição. Pelo menos naquele momento, senti que a análise não estava sendo conduzida de forma imparcial. Então, de maneira absolutamente racional e ponderada, expressei minha sincera reação:

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E não fui o único. A postagem está inundada de outros santistas igualmente indignados. Ao agredi-lo, fui consumido por ódio. O que será do Santos, nesse momento tão delicado, com os portões fechados e pressão crescente? Existe algum santista, um apaixonado de verdade, que seria capaz de concordar? 

Mas sejamos sinceros: ele está realmente errado? Se fôssemos capazes de deixar de lado esse sentimento avassalador, talvez conseguíssemos enxergar com mais clareza. . No entanto, é difícil — profundamente difícil — colocar o amor de lado. Poucos estão dispostos a refletir com frieza sobre algo que é, por natureza, apaixonado. Afinal, tal paixão cega a razão. O apego, a lealdade ao clube, tudo isso fala mais alto. 

Me desculpa, PVC, eu fui babaca. Porém, vamos ser sinceros, o que você esperava? Os rivais vão, claro, dizer "sim, é isso", enquanto quem torce pro Santos vai afirmar "não, não é isso". O que isso realmente entrega? O texto oferece alguma solução ou se resume apenas a um questionamento raso? Fica a sensação de que, em vez de buscar um entendimento, ele apenas acirra as paixões. 

E não estou dizendo que PVC fez isso de forma proposital. Eu realmente não acho que ele tenha escrito com o intuito de atrair um FLAxFLU, mas talvez, também por ter sido consumido de indignação. O que mais poderia fazer, se não usar a voz e a relevância que possui para tentar apontar um problema que, de fato, existe e é terrível?

E isso é um exemplo, de tantos. Existe responsabilidade por parte de quem reproduz e de quem consome. 

Qual a solução?

AFP PHOTO / LEON NEAL

Não existe solução. As feridas sociais amplificam as agressões. Não existe e nunca existirá término para a violência. Se existe solução, é o fim. 

Ao contrário do que reproduzem os moralistas, não é uma questão apenas de cultura. O ambiente competitivo é violento. Como disse, indissociável da vida. E é um fato que, precisamos lidar.

E talvez essa seja “a solução”: Lidar. Aceitar que, em várias formas, ela sempre estará presente e que o verdadeiro desafio é como reagir. Nós temos escolha. Se alguém bater em você numa face, ofereça-lhe também a outra. Não pegue pilha, não guarde rancor.

Entenda e seja responsável pelo que você reproduz. Eduque seus sentimentos para a razão. Esse é o seu papel, enquanto pessoa. Porque todo o resto é maior do que nós. Trata-se de estruturas de poder, de dominação do homem sobre o homem. Trata-se de luta coletiva, de conscientização, das feridas tão grandes, intermináveis. É sobre uma mudança tão longa e tão reprimida. 


Heitor


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